Novas unidades, antigos abusos: herdeiros da violência policial na Venezuela
Quando foi levado perante um tribunal venezuelano, acusado de conspirar contra o governo do presidente Nicolás Maduro, John Álvarez contou ao juiz que policiais lhe deram choques elétricos nos genitais, nas costelas, nos joelhos e o agrediram com um bastão para arrancar dele "uma confissão".
Os agentes da Polícia Nacional Bolivariana (PNB) denunciados por Álvarez pertencem a unidades que substituíram as Forças de Ações Especiais (FAES), a temida divisão de elite dissolvida em 2021, após denúncias robustas de violações dos direitos humanos. Ativistas denunciam que estas novas brigadas mantêm práticas abusivas, como prisões arbitrárias, desaparecimentos forçados, execuções extrajudiciais e torturas.
Ao ser apresentado à corte, em 4 de setembro, cinco dias depois de ter sido detido, "John, corajosamente, fez a descrição de seus torturadores e da forma como o torturaram", contou à AFP sua mãe, Wenderlin Peña, sentada na pequena sala de sua casa, em um bairro pobre de Caracas.
Exames demonstraram que o estudante universitário de 24 anos sofreu "perda parcial da visão" do olho esquerdo e lesões em um rim e em uma perna, segundo seus familiares e sua defesa, que culparam os agentes das novas divisões da PNB.
A ONU exigiu a eliminação das FAES, criadas em 2015, acusando-as de praticar execuções extrajudiciais em operações contra a criminalidade em áreas pobres.
Após sua dissolução, funcionários denunciados por abusos foram realocados em unidades como a Direção de Ações Estratégicas e Táticas (DAET), a Direção de Investigação Penal (DIP) e a Direção contra o Crime Organizado (DCDO), todas alvos de acusações de violência.
"Foram criadas novas estruturas, mas continuam sendo mantidas as antigas práticas de graves violações dos direitos humanos", critica Marino Alvarado, membro da ONG PROVEA.
- "Repressão seletiva" -
Alvarado considera "muito grave" que chefes das extintas FAES fossem promovidos, como aconteceu com José Miguel Domínguez, ex-diretor desta divisão, sancionado pelos Estados Unidos, e hoje segundo no comando da PNB.
"Agiram cerca de dez" agentes no caso de Álvarez e "temos identificados plenamente cinco", sem que até agora enfrentem consequências, lamentou Joel García, advogado do jovem. "Não há vontade política para investigar, nem punir", acrescentou.
Uma missão de observação da ONU acusou o governo Maduro de "repressão seletiva" contra seus adversários, tendo as corporações policiais como um de seus braços executores.
Em 25 de setembro, a entidade apresentou ao Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas um relatório no qual concluiu que "tinha motivos razoáveis" para acreditar que, entre janeiro de 2020 e agosto de 2023, ocorreram ao menos "cinco privações arbitrárias da vida, 14 desaparecimentos forçados de curta duração e 58 prisões arbitrárias", assim como "28 casos de tortura e outros tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes" contra presos, "incluindo 19 casos de uso de violência sexual".
Caracas qualificou os membros da missão de "mercenários". O chanceler Yván Gil assegurou, nesta terça-feira, em Genebra, que os organismos de segurança agem "seguindo rigorosamente os protocolos" internacionais e que o país "sanciona qualquer inobservância dos direitos humanos".
O procurador-geral, Tarek William Saab, afirma que mais de 500 funcionários foram condenados por violações dos direitos humanos desde 2017.
A Venezuela enfrenta, ainda, uma investigação do Tribunal Penal Internacional (TPI) por supostos crimes contra a humanidade.
- "Terrorismo?" -
John Álvarez foi vinculado a seis líderes sindicais, condenados em 1º de agosto a 16 anos de prisão por "conspiração", uma sentença que ativistas consideraram represália por protestos por melhores condições de trabalho no setor público.
Segundo sua defesa, o universitário foi forçado a gravar um vídeo no qual incrimina um sindicalista e um ativista.
Álvarez tinha saído da casa da mãe para fazer compras antes do aniversário do irmão caçula quando desapareceu.
No dia seguinte, quando a família o encontrou em um quartel da polícia, após uma busca angustiante por delegacias e hospitais, os agentes alegaram que ele tinha sido detido por colar um panfleto no busto do líder independentista Simón Bolívar e que seria, segundo Peña, solto em questão de dias.
Já nos tribunais, um funcionário "me dá a primeira informação de que John está preso por 'terrorismo'. Terrorismo? Colar um panfleto é terrorismo?", questiona. "Vou me manter de pé, como mãe, para defender o meu filho", assegura.
D.F. Felan--LGdM